O Convênio ICMS n. 109 e a transferência de créditos entre estabelecimentos do mesmo titular 

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Como já manifestado em informativos anteriores, em 29 de dezembro de 2023, com a publicação da Lei Complementar (“LC”) n. 204/03, alterou-se a Lei Complementar n. 87/96 dispondo sobre a não incidência do ICMS nas hipóteses de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. 

Tal alteração decorreu da construção jurisprudencial sobre a matéria nos tribunais superiores, especificamente da Súmula n. 166, do STJ, da tese fixada pelo STF no Tema n. 1099 em repercussão geral, e, posteriormente, da decisão do STF, na apreciação da Ação Direta de Constitucionalidade ADC n. 49, que declarou a inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. 

Ainda que inequívoco a orientação jurisprudencial no sentido da inexistência de hipótese de incidência de ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, os referidos tribunais, em especial o STF, quando do julgamento da ADC n. 49, não enfrentou aspecto intrínseco à controvérsia, relacionado a possibilidade de transferência de créditos nessas operações, notadamente, nas operações interestaduais de transferência. 

Embora tenha reconhecido o direito à manutenção e a transferência dos créditos de ICMS, bem assim os efeitos sistêmicos da referida decisão em relação à apuração do imposto devido e o impacto no orçamento dos estados, o STF não determinou, claramente, como seria o tratamento a ser dispensado à transferência desses créditos entre os estabelecimentos. 

É fato que em sede de recursos de embargos de declaração na ADC n. 49, em alguns votos, foram externadas opiniões, desvinculadas do limite da controvérsia, em relação a possibilidade de considerar tais transferências, embora não sujeitas ao ICMS, como se tributadas fossem, a bem de operacionalizar a transferência de créditos por parte do contribuinte, do estabelecimento de origem ao estabelecimento de destino. 

Em relação a essas opiniões, merece destaque o voto do Ministro Dias Toffoli no sentido de que caberia ao legislador complementar, à luz da orientação jurisprudencial, determinar o adequado tratamento a ser dado aos referidos créditos: 

“(…) Outro ponto que tem grande possibilidade de ser mais discutido nas casas legislativas é o atinente à possibilidade de ficar a critério do contribuinte, qualquer que seja a situação, fazer a incidência e o destaque do ICMS na saída de seu estabelecimento para outro estabelecimento de mesmo titular. Note-se que, nesse caso, a dinâmica da partilha do ICMS entre estados de origem e de destino muito dependerá da escolha feita pelo contribuinte. Talvez isso não seja interessante para algumas unidades federadas. De mais a mais, ainda terá de ser bem discutido, mormente em face da não cumulatividade, se a transferência de créditos entre o estabelecimento de origem e o de destino do mesmo titular, especialmente quando localizados em estados diferentes, somente poderia ocorrer com a opção do sujeito passivo pela incidência e pelo destaque do ICMS na saída da mercadoria daquele estabelecimento. Diante da complexidade das matérias e de outras com elas imbricadas, tenho, para mim, que o melhor lugar para se travar um debate aprofundado é o Congresso Nacional. É certo, ainda, que, para além da lei complementar federal em alusão, surgirão legislações estaduais e, quem sabe, do CONFAZ versando sobre o presente tema, a fim de, v. g., uniformizar procedimentos a serem observados pelos estados e pelo Distrito Federal.” 

Entretanto, considerando os impactos orçamentários, os estados foram céleres na tentativa de disciplinar o tratamento a ser estabelecido à transferência de créditos nas operações de transferência, mediante edição pelo Confaz, do Convênio n. 178/23.  

Recentemente, com o advento da LC n. 204/23 e a possibilidade de se considerar as transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular como equiparadas a operações tributadas, o Convênio n. 178/23 foi revogado pelo Convênio n. 109/24, recém editado. 

Em análise ao referido Convênio, sob alguns aspectos, a exemplo do Convênio n. 178/23, parece que este extrapola sua competência, tendo ampliado indevidamente e, logo, ilegalmente, o alcance de algumas disposições da LC n. 204/23. 

Faz-se necessário esclarecer que os convênios são acordos que obrigam os seus signatários, entes políticos da federação, a recepcionarem, editarem normas no âmbito de suas competências legislativas, a produzirem efeitos jurídicos válidos junto aos seus administrados, no tocante às disposições por eles acordadas.  

A LC n. 204/23, dispõe sobre duas hipóteses distintas a regular a transferência de créditos entre estabelecimentos que realizem operações de transferência de mercadorias: (i) a transferência de mercadorias, sem incidência de ICMS, entre estabelecimentos do mesmo titular e, (ii) essas mesmas transferências, que por opção do contribuinte, são equiparadas a operações tributadas. 

Em se considerando as operações como o são, ou seja, não sujeitas à incidência do ICMS, o legislador complementar determinou que o crédito do imposto relativo às operações anteriores do estabelecimento de origem deve ser transferido ao estabelecimento de destino, limitado ao resultado da aplicação da alíquota a que estaria sujeita a operação, se tributada fosse, sobre o valor da operação. 

Concluída referida transferência de crédito e resultando saldo credor no estabelecimento de origem, este deve ser reconhecido à escrita fiscal deste estabelecimento. 

A determinação legislativa, nesse aspecto, em cumprimento a sua competência constitucional no sentido de dirimir os conflitos de competência tributária, buscou garantir a não cumulatividade do ônus do imposto no clico econômico de consumo e, ao mesmo tempo, prudência, no sentido de proteger o orçamento dos estados. 

O Convênio n. 109/24 editado após a LC reproduz parte das disposições da referida lei, mas vai além ao disciplinar critérios a determinar o valor da operação para fins de transferência do referido crédito. 

Nesse ponto, embora compreensível o interesse em evitar abusos na manutenção ou transferência de créditos, considerando a tese firmada pela jurisprudência, parece desnecessária tal disciplina, à medida que a própria legislação tributária existente, inclusive e especialmente as disposições relacionadas à escrituração fiscal, já fornece critérios objetivos à mensuração do respectivo valor. 

Tal ampliação pode, em tese, a partir da edição de norma competente pelos estados signatários, permitir questionamentos em relação à legitimidade de determinação de um valor da operação distinto do valor real à transferência pretendida, suscitando demandas judiciais. 

Outra questão, que parece ser relevante, diz respeito a disposição do § 2º da cláusula 4ª do Convênio n. 109/24, no sentido de que o cálculo do crédito a ser transferido deve ser apurado considerando que as alíquotas de ICMS aplicáveis às transferências devem integrar os valores dessas mercadorias. 

Ora, se o crédito a ser transferido considerar na sua determinação, o valor do ICMS, calculado a partir da aplicação da alíquota de ICMS sobre o valor da operação de transferência, admitir-se-á que o ICMS compõe o valor da operação e, logo, sua incidência. 

Nesse particular, não parece razoável interpretar que a expressão “deve integrar o valor da operação” admita, para fins de cálculo do crédito a ser transferido, o ICMS como integrante do próprio valor da transferência e aplicar as alíquotas correspondentes à operação, como se o ICMS fosse devido sobre o valor da operação, ou seja, considerando o ICMS como compreendido nesse valor. 

Tal interpretação conduziria a uma maior transferência de crédito ao estabelecimento de destino sem razão, critério que justifique, legitime, referido acréscimo. 

Há de registrar que o legislador, mesmo o complementar, não dispõe de arbitrariedade à eleição dos critérios estabelecidos ao tratamento dos créditos do imposto e o direito a sua compensação. Tais critérios devem ser considerados sob orientação das normas e princípios que limitam a discricionariedade do legislador.  

Inequívoco que o princípio da não cumulatividade, no caso concreto, não permite ao legislador estabelecer critério distinto à realidade da operação e do valor a ela correspondente, salvo se justificado que tal critério, presta-se a confirmar, explicitar referida realidade.  

Enfim, referido convênio determina que se o contribuinte optar por tratar as transferências entre seus estabelecimentos como tributadas, terá que fazê-lo por um período mínimo de um ano e tal opção deve ser aplicada, indistintamente, a todos os estabelecimentos da pessoa jurídica em território nacional. 

Tal condição, seja em relação ao período de um ano, seja em relação a sua aplicação indistinta a todos estabelecimentos também não encontra aderência nas disposições contidas na legislação complementar e, logo, ainda que recepcionada pela legislação interna dos estados signatários, deve suscitar questionamentos judiciais. 

Nossa equipe de Tributário permanece à disposição para auxiliar em relação as recentes alterações da legislação. 

Por Fábio Pedraza e Meiriellen Targino  

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